A Síndrome do Músico-Ouvinte
Toco tudo certo em casa, mas quando vou apresentar toco tudo errado. Porquê?

"A Síndrome do Músico-Ouvinte" (esta doença não está catalogada no ministério da saúde) é quando o músico vai tocar para outras pessoas e ele se atrapalha todo, soando muito pior a quando está sozinho no quarto de estudo.
Um desejo muito forte de "impressionar" o ouvinte toma conta de uma parte do seu eu, sendo que a outra parte se sente pressionada a isso. Vamos chamar as partes de 'Eu 1' e 'Eu 2'.
O Eu 1 é o ser primário, capaz de vários prodígios, de aprender, é curioso e estudioso. O Eu 2 é mandão, autoritário, disciplinador. Eles se completam, na medida em que '2' regula as intenções e desejos mundanos do '1'. Acontece que o desequilíbrio do relacionamento entre eles pode ser a fonte de vários problemas, que não tenho nem capacidade para discuti-los. (leia "O Jogo Interior do Tênis", de Tim Gallwey).
O que vou descrever é algo que reflito sobre mim mesmo e, há muitos anos, venho desenvolvendo estratégias para amenizar e equilibrar isso.
Bem, vamos retomar a ideia da síndrome: O músico sentirá uma incrível vontade de tocar algo que impressione seu ouvinte. Ele quer que todos o vejam como um músico genial. Mas como ele pode julgar quanto ao material sonoro que impressionará? Somente através de suas próprias experiências, em ocasiões em que se sentiu impressionado ao ver outros músicos tocarem. Ele tentará reproduzir a sensação partindo de si próprio, como ouvinte de si mesmo (daí síndrome do músico-ouvinte). Muitas vezes, vemos certos músicos tocarem o nosso instrumento de escolha (no meu caso, o piano) e ficamos profundamente marcados por aquela cena. Lembro-me de uma em particular.
Em um congresso de final de semana, participei de um workshop em São Paulo com um dos maiores pianistas/tecladistas/arranjadores da atualidade. Ele é brasileiro e se mudou para os EUA para trabalhar e lecionar em uma faculdade em Los Angeles. Imagine a cena... Vários tecladistas na sala aguardando o professor entrar, todos conversando sobre teclas, tocando o teclado que seria usado pelo mestre, uma loucura. Estava lá um tecladista que na época tinha 18 anos (isso aconteceu em 2001) que mais tarde se tornaria um dos grandes talentos brasileiros da atualidade. Ele estava subindo e descendo escalas, fazendo altos improvisos de Jazz, acordes e todos olhando com admiração. Chegando o horário, o professor entra na sala, com vestuário bem americano (boné, calça de brim, camiseta branca por baixo da camisa de botão) e, para testar o teclado, ele toca rapidamente uma simples escala maior, finalizando com um grande acorde. O que ele fez foi muito mais simples que as corridas de Jazz do rapaz de 18 anos, mas a sensação que tive foi como se um forte vento tivesse vindo em minha direção, quase me derrubando da cadeira. Uau, que sensação! Eu ainda tinha cabelo na época e acho que aquelas notas até levantaram o meu topete. Muito simples, mas esta experiência me marcou. Ele tocou aquelas notas com o mínimo esforço, mas com um grande poder e autoridade.
Por mais simples e sem graça que fosse para ele, aquilo causou em mim uma enorme onda de choque. A seguir, você teria me visto reproduzir o efeito várias e várias vezes, mas sem o mesmo poder e com muito esforço na tentativa de impressionar os outros da mesma forma.
Acontece que colocamos a nós mesmos na posição do ouvinte e queremos tocar algo que 'achamos' que vai impressionar os outros. Isso dá início a uma empreitada desenfreada de querer tocar aquilo que nos impressiona, na ilusão de que isso impressionará também os outros.
Precisamos mudar este paradigma. Mas qual será o novo? O novo paradigma é:
O que impressiona os outros é aquilo que tocamos com extrema facilidade.
Acontece que, uma vez que nós dominamos um material musical, este não mais nos impressiona, porque fica fácil para nós. Aí, vamos tentar causar espanto baseando-nos na projeção no outro, tocando coisas que para nós são incríveis (ou seja, o que não sabemos tocar). É como comprar um carro zero: No início você fica cheio de ahhh, ohhh, mas depois de alguns anos com o carro, ele fica comum e normal. Quando outras pessoas falam, "nossa que carrão, einh?" você olha pra ele e pensa, "é mesmo, né... já tinha esquecido".
Recapitulando:
1. A pessoa fica suscetível à síndrome quando ela deseja impressionar os outros.
2. Ela quer impressionar usando material que impressiona a si própria, que resulta em
3. uma performance, como dizem os estadunidenses, 'half-clever' (meio inteligente).
Solução: Entender, crer e saber que, em primeiro lugar, sua tarefa como músico não é impressionar ninguém. Mesmo em uma audição, você não tem que impressionar ninguém. Sua tarefa como músico é mover as pessoas, tocar as almas delas. Hoje entendo que fiquei impressionado com o músico de 18 anos; o professor tocou minha alma.
Em segundo lugar, desconstruindo ainda mais o velho paradigma: querer impressionar as pessoas tocando coisas que você não sabe ou ainda não domina é igual servir um bolo meio-assado, fora do ponto de cozimento. Domine aquele material musical antes de servi-lo ao ouvinte. Um bolo simples, bem assado, suculento e bem feito é muito melhor que um bolo super decorado 'impressionante' e cru.
Em terceiro lugar, sempre treine de forma musical, acrescentando dinâmicas e sentimentos ainda no quarto de estudo, porque isso também tem que ser treinado. Querer tocar com emoção apenas em público fará você entregar uma performance fora do ponto, e isso é uma das coisas que mais atrapalham os alunos ao apresentar a música para o professor na sala de aula. Uma outra é a adrenalina.
Me perguntam: "qual é a coisa mais difícil que você sabe tocar?" A resposta seria: "aquilo que ainda não sei tocar".
Foto: http://www.lacasapark.com/la/2010/01/urs-fischer-marguerity-de-ponty-at-new-museum-nyc/
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